ENCENAÇÃO
A noção de encenação é recente; ela data apenas da segunda metade do
século XIX e o emprego da palavra remonta a 1820 (VEINSTEIN, 1955:9). É
nesta época que o encenador passa a ser o responsável “oficial” pela
ordenação doe espetáculo. Anteriormente, o ensaiador ou, às vezes, o
ator principal é que era encarregado de fundir o espetáculo num molde
preexistente. A encenação se assemelhava a uma técnica rudimentar de
marcação* dos atores. Esta concepção prevalece às vezes entre o grande
público, para quem o encenador só teria que regulamentar os movimentos
dos atores e das luzes.
B. DORT explica o advento da encenação não pela complexibilidade dos recursos técnicos e da presença indispensável de um “manipulador” central, mas por uma modificação dos públicos: “A partir da segunda metade do século XIX, não há mais, para os teatros, um público homogêneo e nitidamente diferenciado segundo o gênero dos espetáculos que lhe são oferecidos. Desde então, não existe mais nenhum acordo fundamental prévio entre espectadores e homens de teatro sobre o estilo e o sentido desses espetáculos” (1971:61).
1. Funções da Encenação
a. Definições mínima e máxima
A. VEINSTEIN propõe duas definições de encenação, segundo o ponto de vista da grande público e aquele dos especialistas: “Numa ampla acepção, o termo encenação designa o conjunto dos meios de interpretação cênica: cenário, iluminação, música e atuação [...]. Numa acepção estreita, o termo encenação designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num certo espaço de atuação, dos diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra dramática” (1955: 7).
Deixamos de lado as razões históricas do surgimento da encenação, no final do século XIX, sem menosprezar sua importância. Seria fácil mostrar a revolução técnica da cena, entre 1880 e 1900, principalmente a mecanização do palco e o aperfeiçoamento da iluminação elétrica. A isto se acrescentam a crise do drama, assim como o desmoronamento da dramaturgia clássica e do diálogo (SZONDI, 1956).
b. Exigência totalizante
Em suas origens, a encenação afirma uma concepção clássica da obra teatral cênica como obra total e harmônica que ultrapassa e engloba a soma dos materiais ou artes cênicas, outrora considerados como unidades fundamentais. A encenação proclama a subordinação de cada arte ou simplesmente de cada signo a um todo harmonicamente controlado por um pensamento unificador. “Uma obra de arte não pode ser criada se não for dirigida por um pensamento único” (E. G. CRAIG). A exigência totalizante é acompanhada, desde o surgimento da encenação, de uma tomada de consciência da historicidade dos textos e das representações, da série de sucessivas concretizações de uma mesma obra. Esta historicidade se manifesta pela imposição de um novo saber ao texto a ser representado: aquele das ciências humanas: “O saber é constitutivo da encenação” (PIEMME, 1984: 67).
c. Colocação no espaço
A encenação consiste em transpor a escritura dramática do texto (texto escrito e/ou indicações cênicas*) para uma escritura cênica. "A arte da encenação é a arte de projetar no espaço aquilo que o dramaturgo só pode projetar no tempo" (APPIA, 1954: 38). A encenação é "numa peça de teatro a parte verdadeira e especificamente teatral do espetáculo" (ARTAUD, 1964b: 161, 162). É, em suma, a transformação, ou melhor, a concretização do texto, através do ator e do espaço cênico, numa duração vivenciada pelos espectadores.
O espaço é, por assim dizer, colocado em palavras: o texto é memorizado e inscrito no espaço gestual do ator, réplica após réplica. O ator busca o percurso e as atitudes que melhor correspondem a sua inserção espacial. As falas do diálogo, reagrupadas no texto, são doravante espalhadas e inseri das no espaço e no tempo cênicos, para serem vistas e ouvidas: "O tipo de enunciação do texto dramático contém a exigência de ser dado a ver", escreve justamente P. RICOEUR (1983: 63). O gesto, por exemplo, é sistematicamente trabalhado para ser legível (mais que visível); ele é estilizado, abstrato, decomposto, associado mnemotecnicamente ao desfile do texto, ancorado de acordo com alguns pontos de referência, em alguns apoios (subpartitura*).
d. Conciliação
Os diferentes componentes da representação, devidos muitas vezes à intervenção de vários criadores (dramaturgo, músico, cenógrafo etc.), são reunidos e coordenados pelo encenador. Quer se trate de obter um conjunto integrado (como na ópera) ou, ao contrário, de um sistema onde cada arte conserva sua autonomia (BRECHT), o encenador tem por missão decidir o vínculo entre os diversos elementos cênicos, o que evidentemente influi de maneira determinante na produção do sentido global. Este trabalho de coordenação e homogeneização se faz, para um teatro que mostra uma ação, em torno da explicação e do comentário da fábula* que é tornada inteligível recorrendo-se à cena usada como teclado geral da produção teatral. A encenação deve formar um sistema orgânico completo, uma estrutura onde cada elemento se integra ao conjunto, onde nada é deixado ao acaso, e sim, possui uma função na concepção de conjunto. Toda encenação instaura uma coerência *, a qual, aliás, ameaça a todo momento transformar-se em incoerência. Exemplar, a este respeito, é a definição de COPEAU, que retoma inúmeras experiências teatrais: "Por encenação entendemos: o desenho de uma ação dramática. É o conjunto dos movimentos, gestos e atitudes, a conciliação das fisionomias, das vozes e dos silêncios; é a totalidade do espetáculo cênico, que emana de um pensamento único, que o concebe, o rege e o harmoniza. O encenador inventa e faz reinar entre as personagens aquele vínculo secreto e invisível, aquela sensibilidade recíproca, aquela misteriosa correspondência das relações, em cuja ausência o drama, mesmo que interpretado por excelentes atores, perde a melhor parte de sua expressão" (COPEAU, 1974: 29-30).
e. Evidenciação do sentido
A encenação não é mais considerada, portanto, como "mal necessário" do qual o texto dramático poderia muito bem, afinal de contas, se privar, e sim, como o próprio local do aparecimento do sentido da obra teatral. Assim, para STANISLÁVSKI, compor uma encenação consistirá em tomar materialmente evidente o sentido profundo do texto dramático. Para isso, a encenação disporá de todos os recursos cênicos (dispositivo cênico, luzes, figurinos etc.) e lúdicos (atuação, corporalidade e gestualidade). A encenação compreende ao mesmo tempo o ambiente onde evoluem os atores e a interpretação psicológica e gestual desses atores. Toda encenação é uma interpretação do texto (ou do script), uma explicação do texto "em ato"; s6 temos acesso à peça por intermédio desta leitura do encenador.
f. Três questões sobre a organização da encenação
Para compreender a concretização que implica toda nova encenação de um mesmo texto, busca-se estabelecer a relação entre o texto dramático e seu contexto de enunciação, colocando três questões teóricas:
• Que concretização é feita do texto dramático quando de qualquer nova leitura ou encenação? Que circuito da concretização se estabelece então como obra-coisa, contexto social e objeto estético? (Para retomar os termos de MUKAROVSKY (1934); cf PAVIS, 1983a).
• Que ficcionalização, isto é, que produção de uma ficção, a partir do texto e a partir da cena, se estabelece graças aos efeitos conjugados do texto e do leitor, da cena e do espectador? No que a mescla de duas ficções, textual e cênica, é indispensável à ficcionalização teatral? (cf PAVIS, 1985d)?
• A que ideologização são submetidos o texto dramático e a representação? O texto - seja ele dramático ou espetacular - só se compreende em sua intertextualidade*, principalmente em relação às formações discursivas e ideológicas de uma época ou de um cor pus de textos. Trata-se de imaginar a relação do texto dramático e espetacular com o contexto social, isto é, com outros textos e discursos mantidos sobre o real por uma sociedade. Sendo esta relação das mais frágeis e variáveis, o mesmo texto dramático produz sem dificuldade uma infinidade de leituras e, portanto, de encenações imprevisíveis a partir somente do texto.
g. Solução imaginária
O relacionamento das duas ficções, textual e cênica, não se limita a estabelecer uma circularidade entre enunciado e enunciação, ausência e presença. Ela confronta os locais de indeterminação e as ambigüidades do texto e da representação. Estes locais não coincidem necessariamente no texto e no palco. Por vezes, a representação pode tomar ambígua, isto é, polissêmica ou, ao contrário, vazia de sentido, esta ou aquela passagem do texto. Por vezes, ao contrário, a representação toma partido sobre uma contradição ou uma indeterminação textual.
Tomar opaco pelo palco o que era claro no texto, ou esclarecer o que era opaco no texto, tais operações de determinação/indeterminação situam-se no cerne da encenação. Na maior parte do tempo, a encenação é uma explicação de texto que organiza uma mediação entre o receptor original e o receptor contemporâneo. Por vezes, ao contrário, ela é uma "complicação de texto", uma vontade deliberada de impedir toda comunicação entre os contextos sociais das duas recepções.
Em certas encenações (aquelas inspiradas, por exemplo, por uma análise dramatúrgica brechtiana), trata-se de demonstrar como o texto dramático foi ele próprio a solução imaginária de contradições ideológicas reais, aquelas da época na qual se estabeleceu a ficção. A encenação é então encarregada de tomar a contradição textual imaginável e representável. Para encenações preocupadas com a revelação de um subtexto do tipo stanislavskiano, supõe-se que o inconsciente do texto acompanhe, num texto paralelo, o texto realmente pronunciado pelas personagens.
h. Discurso paródico
Qualquer que seja a vontade, apregoada ou não, de mostrar a contradição da fábula ou a verdade profunda do texto através da visualização do subtexto, a encenação é sempre um discurso ao lado de uma leitura achatada e neutra do texto; ela é, no sentido etimológico, paródica. mas nem a contradição, nem o subtexto inconsciente estão verdadeiramente ao lado ou acima do texto (como o metatexto); eles estão no entrechoque e no entrelaçamento das duas leituras, no interior da concretização, da ficção, da relação com a ideologia: como uma paródia que não poderíamos separar do objeto parodiado.
i. Direção de ator
Concretamente, a encenação passa por uma fase de direção de atores. O encenador guia os comediantes fazendo-os mudar e explicitando-lhes a imagem que eles produzem trabalhando a partir de suas propostas e efetuando correções em função dos outros atores. Ele se assegura de que o detalhe do gesto, da entonação, do ritmo corresponde ao conjunto do discurso da encenação, integra-se a uma seqüência, a uma cena, a um conjunto. Os atores experimentam, durante os ensaios, diversas situações de enunciação*. Ocupam pouco a pouco o espaço, ao termo de um trajeto, organizando e organizando-se no conjunto dos sistemas cênicos: "É isto a direção de ator, conseguir motivar vocês e por que os gestos efetuados por vocês no palco lhes pareçam não só que 'têm de ser feitos', mas que são evidentes: sentir que o papel é interpretado apenas com os deslocamentos, por exemplo" (C. FERRAN in Théâtre/Public n. 64-65, 1985, p. 60). Uma direção assim supõe que os signos produzidos pelo ator sejam emitidos claramente, sem "ruídos" nem interferências, com os traços pertinentes buscados pelo discurso global da encenação, que os comediantes realizem o jogo cênico uns com os outros, sejam audíveis e "legíveis". Dedica-se freqüentemente um cuidado particular à entonação e ao ritmo, àquilo que os alemães chamam de Sprachregie (encenação da língua).
A encenação não é necessariamente - como está na moda dizer - um exercício de autoritarismo do encenador que despoja os autores e tiraniza sadicamente atores-marionetes. BRECHT o lembrava, em vão: "Entre nós, o encenador não penetra no teatro com sua 'idéia' ou sua 'visão', uma 'planta baixa das marcações' e dos cenários prontos. Seu desejo não é 'realizar' uma idéia. Sua tarefa consiste em despertar e organizar a atividade produtiva dos atores (músicos, pintores etc.). Para ele, ensaiar não significa fazer engolir à força alguma concepção fixada a priori em sua cabeça e, sim, pô-la à prova" (1972: 405).
i. Indicação
No jargão dos atores, diz-se que o encenador dá indicações aos comediantes. Toda a dificuldade consiste em dar e receber esta indicação por meias palavras: "É uma coisa bem difícil saber pegar bem uma indicação, como é coisa difícil para o encenador dá-Ia com clareza. É preciso captar o espírito de não tomar-se escravo da letra" (DULLIN, 1946: 48). Conselho que seguem todos os encenadores para quem a indicação não deve desembocar numa imitação: indicar não é ditar, é, antes, sugerir, informar, mostrar um caminho possível.
2. Problemas da Encenação
a. Papel da encenação
O surgimento do encenador na evolução do teatro é significativo de uma nova atitude perante o texto dramático: durante muito tempo, na verdade, este apareceu como o recinto fechado de uma única interpretação possível que era preciso despistar (comprova isto, por exemplo, a fórmula de LEDOUX que recomendava ao encenador, em confronto com o texto, "servir e não servir-se"). Hoje, ao contrário, o texto é um convite a buscar seus inúmeros significados, até mesmo suas contradições; ele se presta a novas interpretações. O advento da encenação prova, além do mais, que a arte teatral* tem doravante direito de cidade como arte autônoma. Sua significação deve ser buscado tanto em sua forma e na estrutura dramatúrgica e cênica quanto no ou nos sentidos do texto. O encenador não é um elemento exterior à obra dramática: "Ele ultrapassa o estabelecimento de um quadro ou a ilustração de um texto. Toma-se o elemento fundamental da representação teatral: a mediação necessária entre um texto e um espetáculo. [ ... ] Texto e espetáculo se condicionam mutuamente; um expressa o outro" (DORT, 1971: 55-56).
b. O discurso * da encenação
A encenação de um texto sempre tem uma palavra a dizer: intervenção capital pois será, para a representação, a "última palavra"; não existe discurso universal e definitivo da obra que a representação deve trazer à luz. A alternativa que ainda hoje vigora entre os grandes encenadores - "levar o texto" ou "levar a representação" - é, portanto, falseada desde o início. Não se poderia privilegiar impunemente um dos dois termos. Quase não se pensa mais, hoje, que o texto é o ponto de referência congelado numa única representação possível, texto que só teria uma única "verdadeira" encenação (roteiro*, texto e cena*).
c. Local do discurso da encenação
• As indicações cênicas* dão diretivas muito precisas para a realização cênica, porém a encenação não tem necessariamente que segui-Ias ao pé da letra.
• O próprio texto muitas vezes sugere o desenrolar e o local da ação, a posição das personagens etc. (indicações espaço-temporais*). Um texto dramático, qualquer que seja ele, não pode ser escrito sem uma vaga idéia de uma possível representação, sem um conhecimento, mesmo que rudimentar, das leis da cena usada, da concepção da realidade representada, da sensibilidade de uma época aos problemas do tempo e do espaço (préencenação*).
• As indicações cênicas e as sugestões vindas do texto nunca são verdadeiramente imperativas, e é decisiva a intervenção pessoal, e em certa medida exterior ao texto, do encenador. O local e a forma desta intervenção são muito ambíguos. Mesmo que seja concretizado num caderno de encenação, o discurso do encenador dificilmente é isolável da representação; ele constitui sua enunciação*, metalinguagem perfeitamente integrada ao modo de apresentação da ação e das personagens; ele não vem se juntar ao texto lingüístico e à cena, não existe em parte alguma como texto acabado; está espalhado nas opções do jogo da atuação da cenografia, do ritmo etc. Por outro lado, ele só existe, segundo nossa concepção produtiva-receptiva da encenação, quando é reconhecido e, em parte, partilhado pelo público. Mais que um texto (cênico) ao lado do texto dramático, o metatexto é o que organiza, do interior, a concretização cênica, o que não está ao lado do texto dramático, mas, de certo modo, no interior dele, como resultante do circuito da concretização (circuito entre significante, contexto social e significado do texto) (PAVIS, 1985e: 244-268).
• Além do trabalho consciente do encenador, é preciso, enfim, deixar lugar para um pensamento visual ou inconsciente dos criadores. Se, como o sugere FREUD, o pensamento visual se aproxima mais dos processos inconscientes que o pensamento verbal, o encenador ou o cenógrafo poderia fazer o papel de "médium" entre linguagem dramática e linguagem cênica. A cena sempre remeteria então à "outra cena" (espaço interior*).
3. Tipologia das Encenações
a. A encenação dos clássicos
A classificação é arriscada e as categorias voláteis (PAVIS, 1996a). Certas categorias de encenacão dos clássicos também valem mutatis mutandis para os textos contemporâneos. Elas colocam todas as questões estéticas com uma acuidade ainda maior. O fato de se tratar de textos já antigos e dificilmente aceitáveis hoje sem uma certa explicação quase que obriga o encenador a tomar partido quanto à sua interpretação ou a situar-se na tradição das interpretações. Várias soluções oferecem-se então a seu trabalho:
• Reconstituição arqueológica
Não encenar e, sim, reencenar uma peça inspirando-se, com um fervor arqueológico, na encenação de origem, quando os documentos de época estão disponíveis.
• Neutralização
Recusar a cena e suas escolhas cênicas em "benefício" de uma leitura neutra do texto, sem tomar partido quanto à produção do sentido e dando a ilusão (falaciosa) de que só nos prendemos ao texto e que a visualização é redundante. Ora o texto é vivido como uma ação única que não "dobra" o real (ARTAUD); ora o texto é concebido como um "bisturi que permite que abramos a nós mesmos' (GROTOWSKI, 1971: 35).
• Historicização
Levar em conta a defasagem entre a época da ficção representada, aquela de sua composição, e a nossa, acentuar esta defasagem e indicar as razões históricas nos três níveis de leitura, isto é, historicizar". Este tipo de encenação restaura mais ou menos explicitamente, os pressupostos ideológicos ocultados, não receia desvendar os mecanismos da construção estética do texto e de sua representação. PLANCHON, VILAR, STREHLER, FORMIGONI, VINCENT pertencem a esse tipo de "encenação sociológica" (VlTEZ, 1994: 147).
• Recuperação do texto como material bruto
Textos antigos são usados como simples material com finalidade estética ou ideológica (atualização brechtiana, modernização, adaptação, reescritura). Citações ou trechos de outras obras esclarecem intertextualmente a obra interpretada (MERGUISCH, VITEZ).
• Encenação de sentidos possíveis e múltiplos do texto
Instalando práticas significantes* (KRISTEVA), que oferecem o texto espetacular à manipulação do espectador (A. SIMON, 1979: 42-56). Estas práticas oscilam entre uma abstração e uma abundância da cena.
• "Despedaçamento" do texto original
Ao mesmo tempo destruição de sua harmonia superficial, revelação das contradições ideológicas (cf PLANCHON e sua Mise en Piêcei s) du Cid, seu Arthur Adamov ou suas Folies bourgeoises) ou as encenações do Théâtre de l'Unité (!).
• Retorno ao mito
A encenação se desinteressa da dramaturgia específica do texto, para pôr a nu o núcleo mítico que o habita (ARTAUD, GROTOWSKI, BROOK e CARRIERE em sua adaptação do Mahabarata).
b. Alterações na escritura
Um meio possível de se demarcar os tipos de encenação consiste em observar como elas tratam o texto: "Por qualquer extremidade que sejam pegas, todas as perguntas que o teatro faz sempre conduzem a esta: que acontece com o sentido do texto no palco?" (SALLENAVE, 1988: 93). Cada década parece haver inventado sua própria relação com os textos e o palco:
- os anos cinqüenta propuseram uma leitura (respeitosa) das peças do patrimônio nacional (VILAR);
- os anos sessenta introduzem uma releitura crítica e distanciada (PLANCHON);
- os anos setenta preferem uma desleitura, desconstrução polifônica e dialógica (BAKHTIN, 1978) das práticas significantes (VITEZ);
- os anos oitenta questionam a estética da recepção e o "papel do leitor" (ECO, 1980), tomam altura e propõem meta leituras que timbram toda observação com o selo do comentário, marginal ou predominante (MESGUICH);
- os anos noventa restauram os poderes da escritura e assistem a uma eclosão de escrituras tanto autônomas quanto abertas numa encenação: superleitura que se presta a todas as situações (COLAS ou PY);
- e no terceiro milênio? O texto, ou o hipertexto, talvez passe da memória humana à memory da máquina, do corpo à virtualidade, sem que ninguém tenha mais consciência dele, misturadas que estarão hiperescritura e hiperleitura.
(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 122 - 127)
B. DORT explica o advento da encenação não pela complexibilidade dos recursos técnicos e da presença indispensável de um “manipulador” central, mas por uma modificação dos públicos: “A partir da segunda metade do século XIX, não há mais, para os teatros, um público homogêneo e nitidamente diferenciado segundo o gênero dos espetáculos que lhe são oferecidos. Desde então, não existe mais nenhum acordo fundamental prévio entre espectadores e homens de teatro sobre o estilo e o sentido desses espetáculos” (1971:61).
1. Funções da Encenação
a. Definições mínima e máxima
A. VEINSTEIN propõe duas definições de encenação, segundo o ponto de vista da grande público e aquele dos especialistas: “Numa ampla acepção, o termo encenação designa o conjunto dos meios de interpretação cênica: cenário, iluminação, música e atuação [...]. Numa acepção estreita, o termo encenação designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num certo espaço de atuação, dos diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra dramática” (1955: 7).
Deixamos de lado as razões históricas do surgimento da encenação, no final do século XIX, sem menosprezar sua importância. Seria fácil mostrar a revolução técnica da cena, entre 1880 e 1900, principalmente a mecanização do palco e o aperfeiçoamento da iluminação elétrica. A isto se acrescentam a crise do drama, assim como o desmoronamento da dramaturgia clássica e do diálogo (SZONDI, 1956).
b. Exigência totalizante
Em suas origens, a encenação afirma uma concepção clássica da obra teatral cênica como obra total e harmônica que ultrapassa e engloba a soma dos materiais ou artes cênicas, outrora considerados como unidades fundamentais. A encenação proclama a subordinação de cada arte ou simplesmente de cada signo a um todo harmonicamente controlado por um pensamento unificador. “Uma obra de arte não pode ser criada se não for dirigida por um pensamento único” (E. G. CRAIG). A exigência totalizante é acompanhada, desde o surgimento da encenação, de uma tomada de consciência da historicidade dos textos e das representações, da série de sucessivas concretizações de uma mesma obra. Esta historicidade se manifesta pela imposição de um novo saber ao texto a ser representado: aquele das ciências humanas: “O saber é constitutivo da encenação” (PIEMME, 1984: 67).
c. Colocação no espaço
A encenação consiste em transpor a escritura dramática do texto (texto escrito e/ou indicações cênicas*) para uma escritura cênica. "A arte da encenação é a arte de projetar no espaço aquilo que o dramaturgo só pode projetar no tempo" (APPIA, 1954: 38). A encenação é "numa peça de teatro a parte verdadeira e especificamente teatral do espetáculo" (ARTAUD, 1964b: 161, 162). É, em suma, a transformação, ou melhor, a concretização do texto, através do ator e do espaço cênico, numa duração vivenciada pelos espectadores.
O espaço é, por assim dizer, colocado em palavras: o texto é memorizado e inscrito no espaço gestual do ator, réplica após réplica. O ator busca o percurso e as atitudes que melhor correspondem a sua inserção espacial. As falas do diálogo, reagrupadas no texto, são doravante espalhadas e inseri das no espaço e no tempo cênicos, para serem vistas e ouvidas: "O tipo de enunciação do texto dramático contém a exigência de ser dado a ver", escreve justamente P. RICOEUR (1983: 63). O gesto, por exemplo, é sistematicamente trabalhado para ser legível (mais que visível); ele é estilizado, abstrato, decomposto, associado mnemotecnicamente ao desfile do texto, ancorado de acordo com alguns pontos de referência, em alguns apoios (subpartitura*).
d. Conciliação
Os diferentes componentes da representação, devidos muitas vezes à intervenção de vários criadores (dramaturgo, músico, cenógrafo etc.), são reunidos e coordenados pelo encenador. Quer se trate de obter um conjunto integrado (como na ópera) ou, ao contrário, de um sistema onde cada arte conserva sua autonomia (BRECHT), o encenador tem por missão decidir o vínculo entre os diversos elementos cênicos, o que evidentemente influi de maneira determinante na produção do sentido global. Este trabalho de coordenação e homogeneização se faz, para um teatro que mostra uma ação, em torno da explicação e do comentário da fábula* que é tornada inteligível recorrendo-se à cena usada como teclado geral da produção teatral. A encenação deve formar um sistema orgânico completo, uma estrutura onde cada elemento se integra ao conjunto, onde nada é deixado ao acaso, e sim, possui uma função na concepção de conjunto. Toda encenação instaura uma coerência *, a qual, aliás, ameaça a todo momento transformar-se em incoerência. Exemplar, a este respeito, é a definição de COPEAU, que retoma inúmeras experiências teatrais: "Por encenação entendemos: o desenho de uma ação dramática. É o conjunto dos movimentos, gestos e atitudes, a conciliação das fisionomias, das vozes e dos silêncios; é a totalidade do espetáculo cênico, que emana de um pensamento único, que o concebe, o rege e o harmoniza. O encenador inventa e faz reinar entre as personagens aquele vínculo secreto e invisível, aquela sensibilidade recíproca, aquela misteriosa correspondência das relações, em cuja ausência o drama, mesmo que interpretado por excelentes atores, perde a melhor parte de sua expressão" (COPEAU, 1974: 29-30).
e. Evidenciação do sentido
A encenação não é mais considerada, portanto, como "mal necessário" do qual o texto dramático poderia muito bem, afinal de contas, se privar, e sim, como o próprio local do aparecimento do sentido da obra teatral. Assim, para STANISLÁVSKI, compor uma encenação consistirá em tomar materialmente evidente o sentido profundo do texto dramático. Para isso, a encenação disporá de todos os recursos cênicos (dispositivo cênico, luzes, figurinos etc.) e lúdicos (atuação, corporalidade e gestualidade). A encenação compreende ao mesmo tempo o ambiente onde evoluem os atores e a interpretação psicológica e gestual desses atores. Toda encenação é uma interpretação do texto (ou do script), uma explicação do texto "em ato"; s6 temos acesso à peça por intermédio desta leitura do encenador.
f. Três questões sobre a organização da encenação
Para compreender a concretização que implica toda nova encenação de um mesmo texto, busca-se estabelecer a relação entre o texto dramático e seu contexto de enunciação, colocando três questões teóricas:
• Que concretização é feita do texto dramático quando de qualquer nova leitura ou encenação? Que circuito da concretização se estabelece então como obra-coisa, contexto social e objeto estético? (Para retomar os termos de MUKAROVSKY (1934); cf PAVIS, 1983a).
• Que ficcionalização, isto é, que produção de uma ficção, a partir do texto e a partir da cena, se estabelece graças aos efeitos conjugados do texto e do leitor, da cena e do espectador? No que a mescla de duas ficções, textual e cênica, é indispensável à ficcionalização teatral? (cf PAVIS, 1985d)?
• A que ideologização são submetidos o texto dramático e a representação? O texto - seja ele dramático ou espetacular - só se compreende em sua intertextualidade*, principalmente em relação às formações discursivas e ideológicas de uma época ou de um cor pus de textos. Trata-se de imaginar a relação do texto dramático e espetacular com o contexto social, isto é, com outros textos e discursos mantidos sobre o real por uma sociedade. Sendo esta relação das mais frágeis e variáveis, o mesmo texto dramático produz sem dificuldade uma infinidade de leituras e, portanto, de encenações imprevisíveis a partir somente do texto.
g. Solução imaginária
O relacionamento das duas ficções, textual e cênica, não se limita a estabelecer uma circularidade entre enunciado e enunciação, ausência e presença. Ela confronta os locais de indeterminação e as ambigüidades do texto e da representação. Estes locais não coincidem necessariamente no texto e no palco. Por vezes, a representação pode tomar ambígua, isto é, polissêmica ou, ao contrário, vazia de sentido, esta ou aquela passagem do texto. Por vezes, ao contrário, a representação toma partido sobre uma contradição ou uma indeterminação textual.
Tomar opaco pelo palco o que era claro no texto, ou esclarecer o que era opaco no texto, tais operações de determinação/indeterminação situam-se no cerne da encenação. Na maior parte do tempo, a encenação é uma explicação de texto que organiza uma mediação entre o receptor original e o receptor contemporâneo. Por vezes, ao contrário, ela é uma "complicação de texto", uma vontade deliberada de impedir toda comunicação entre os contextos sociais das duas recepções.
Em certas encenações (aquelas inspiradas, por exemplo, por uma análise dramatúrgica brechtiana), trata-se de demonstrar como o texto dramático foi ele próprio a solução imaginária de contradições ideológicas reais, aquelas da época na qual se estabeleceu a ficção. A encenação é então encarregada de tomar a contradição textual imaginável e representável. Para encenações preocupadas com a revelação de um subtexto do tipo stanislavskiano, supõe-se que o inconsciente do texto acompanhe, num texto paralelo, o texto realmente pronunciado pelas personagens.
h. Discurso paródico
Qualquer que seja a vontade, apregoada ou não, de mostrar a contradição da fábula ou a verdade profunda do texto através da visualização do subtexto, a encenação é sempre um discurso ao lado de uma leitura achatada e neutra do texto; ela é, no sentido etimológico, paródica. mas nem a contradição, nem o subtexto inconsciente estão verdadeiramente ao lado ou acima do texto (como o metatexto); eles estão no entrechoque e no entrelaçamento das duas leituras, no interior da concretização, da ficção, da relação com a ideologia: como uma paródia que não poderíamos separar do objeto parodiado.
i. Direção de ator
Concretamente, a encenação passa por uma fase de direção de atores. O encenador guia os comediantes fazendo-os mudar e explicitando-lhes a imagem que eles produzem trabalhando a partir de suas propostas e efetuando correções em função dos outros atores. Ele se assegura de que o detalhe do gesto, da entonação, do ritmo corresponde ao conjunto do discurso da encenação, integra-se a uma seqüência, a uma cena, a um conjunto. Os atores experimentam, durante os ensaios, diversas situações de enunciação*. Ocupam pouco a pouco o espaço, ao termo de um trajeto, organizando e organizando-se no conjunto dos sistemas cênicos: "É isto a direção de ator, conseguir motivar vocês e por que os gestos efetuados por vocês no palco lhes pareçam não só que 'têm de ser feitos', mas que são evidentes: sentir que o papel é interpretado apenas com os deslocamentos, por exemplo" (C. FERRAN in Théâtre/Public n. 64-65, 1985, p. 60). Uma direção assim supõe que os signos produzidos pelo ator sejam emitidos claramente, sem "ruídos" nem interferências, com os traços pertinentes buscados pelo discurso global da encenação, que os comediantes realizem o jogo cênico uns com os outros, sejam audíveis e "legíveis". Dedica-se freqüentemente um cuidado particular à entonação e ao ritmo, àquilo que os alemães chamam de Sprachregie (encenação da língua).
A encenação não é necessariamente - como está na moda dizer - um exercício de autoritarismo do encenador que despoja os autores e tiraniza sadicamente atores-marionetes. BRECHT o lembrava, em vão: "Entre nós, o encenador não penetra no teatro com sua 'idéia' ou sua 'visão', uma 'planta baixa das marcações' e dos cenários prontos. Seu desejo não é 'realizar' uma idéia. Sua tarefa consiste em despertar e organizar a atividade produtiva dos atores (músicos, pintores etc.). Para ele, ensaiar não significa fazer engolir à força alguma concepção fixada a priori em sua cabeça e, sim, pô-la à prova" (1972: 405).
i. Indicação
No jargão dos atores, diz-se que o encenador dá indicações aos comediantes. Toda a dificuldade consiste em dar e receber esta indicação por meias palavras: "É uma coisa bem difícil saber pegar bem uma indicação, como é coisa difícil para o encenador dá-Ia com clareza. É preciso captar o espírito de não tomar-se escravo da letra" (DULLIN, 1946: 48). Conselho que seguem todos os encenadores para quem a indicação não deve desembocar numa imitação: indicar não é ditar, é, antes, sugerir, informar, mostrar um caminho possível.
2. Problemas da Encenação
a. Papel da encenação
O surgimento do encenador na evolução do teatro é significativo de uma nova atitude perante o texto dramático: durante muito tempo, na verdade, este apareceu como o recinto fechado de uma única interpretação possível que era preciso despistar (comprova isto, por exemplo, a fórmula de LEDOUX que recomendava ao encenador, em confronto com o texto, "servir e não servir-se"). Hoje, ao contrário, o texto é um convite a buscar seus inúmeros significados, até mesmo suas contradições; ele se presta a novas interpretações. O advento da encenação prova, além do mais, que a arte teatral* tem doravante direito de cidade como arte autônoma. Sua significação deve ser buscado tanto em sua forma e na estrutura dramatúrgica e cênica quanto no ou nos sentidos do texto. O encenador não é um elemento exterior à obra dramática: "Ele ultrapassa o estabelecimento de um quadro ou a ilustração de um texto. Toma-se o elemento fundamental da representação teatral: a mediação necessária entre um texto e um espetáculo. [ ... ] Texto e espetáculo se condicionam mutuamente; um expressa o outro" (DORT, 1971: 55-56).
b. O discurso * da encenação
A encenação de um texto sempre tem uma palavra a dizer: intervenção capital pois será, para a representação, a "última palavra"; não existe discurso universal e definitivo da obra que a representação deve trazer à luz. A alternativa que ainda hoje vigora entre os grandes encenadores - "levar o texto" ou "levar a representação" - é, portanto, falseada desde o início. Não se poderia privilegiar impunemente um dos dois termos. Quase não se pensa mais, hoje, que o texto é o ponto de referência congelado numa única representação possível, texto que só teria uma única "verdadeira" encenação (roteiro*, texto e cena*).
c. Local do discurso da encenação
• As indicações cênicas* dão diretivas muito precisas para a realização cênica, porém a encenação não tem necessariamente que segui-Ias ao pé da letra.
• O próprio texto muitas vezes sugere o desenrolar e o local da ação, a posição das personagens etc. (indicações espaço-temporais*). Um texto dramático, qualquer que seja ele, não pode ser escrito sem uma vaga idéia de uma possível representação, sem um conhecimento, mesmo que rudimentar, das leis da cena usada, da concepção da realidade representada, da sensibilidade de uma época aos problemas do tempo e do espaço (préencenação*).
• As indicações cênicas e as sugestões vindas do texto nunca são verdadeiramente imperativas, e é decisiva a intervenção pessoal, e em certa medida exterior ao texto, do encenador. O local e a forma desta intervenção são muito ambíguos. Mesmo que seja concretizado num caderno de encenação, o discurso do encenador dificilmente é isolável da representação; ele constitui sua enunciação*, metalinguagem perfeitamente integrada ao modo de apresentação da ação e das personagens; ele não vem se juntar ao texto lingüístico e à cena, não existe em parte alguma como texto acabado; está espalhado nas opções do jogo da atuação da cenografia, do ritmo etc. Por outro lado, ele só existe, segundo nossa concepção produtiva-receptiva da encenação, quando é reconhecido e, em parte, partilhado pelo público. Mais que um texto (cênico) ao lado do texto dramático, o metatexto é o que organiza, do interior, a concretização cênica, o que não está ao lado do texto dramático, mas, de certo modo, no interior dele, como resultante do circuito da concretização (circuito entre significante, contexto social e significado do texto) (PAVIS, 1985e: 244-268).
• Além do trabalho consciente do encenador, é preciso, enfim, deixar lugar para um pensamento visual ou inconsciente dos criadores. Se, como o sugere FREUD, o pensamento visual se aproxima mais dos processos inconscientes que o pensamento verbal, o encenador ou o cenógrafo poderia fazer o papel de "médium" entre linguagem dramática e linguagem cênica. A cena sempre remeteria então à "outra cena" (espaço interior*).
3. Tipologia das Encenações
a. A encenação dos clássicos
A classificação é arriscada e as categorias voláteis (PAVIS, 1996a). Certas categorias de encenacão dos clássicos também valem mutatis mutandis para os textos contemporâneos. Elas colocam todas as questões estéticas com uma acuidade ainda maior. O fato de se tratar de textos já antigos e dificilmente aceitáveis hoje sem uma certa explicação quase que obriga o encenador a tomar partido quanto à sua interpretação ou a situar-se na tradição das interpretações. Várias soluções oferecem-se então a seu trabalho:
• Reconstituição arqueológica
Não encenar e, sim, reencenar uma peça inspirando-se, com um fervor arqueológico, na encenação de origem, quando os documentos de época estão disponíveis.
• Neutralização
Recusar a cena e suas escolhas cênicas em "benefício" de uma leitura neutra do texto, sem tomar partido quanto à produção do sentido e dando a ilusão (falaciosa) de que só nos prendemos ao texto e que a visualização é redundante. Ora o texto é vivido como uma ação única que não "dobra" o real (ARTAUD); ora o texto é concebido como um "bisturi que permite que abramos a nós mesmos' (GROTOWSKI, 1971: 35).
• Historicização
Levar em conta a defasagem entre a época da ficção representada, aquela de sua composição, e a nossa, acentuar esta defasagem e indicar as razões históricas nos três níveis de leitura, isto é, historicizar". Este tipo de encenação restaura mais ou menos explicitamente, os pressupostos ideológicos ocultados, não receia desvendar os mecanismos da construção estética do texto e de sua representação. PLANCHON, VILAR, STREHLER, FORMIGONI, VINCENT pertencem a esse tipo de "encenação sociológica" (VlTEZ, 1994: 147).
• Recuperação do texto como material bruto
Textos antigos são usados como simples material com finalidade estética ou ideológica (atualização brechtiana, modernização, adaptação, reescritura). Citações ou trechos de outras obras esclarecem intertextualmente a obra interpretada (MERGUISCH, VITEZ).
• Encenação de sentidos possíveis e múltiplos do texto
Instalando práticas significantes* (KRISTEVA), que oferecem o texto espetacular à manipulação do espectador (A. SIMON, 1979: 42-56). Estas práticas oscilam entre uma abstração e uma abundância da cena.
• "Despedaçamento" do texto original
Ao mesmo tempo destruição de sua harmonia superficial, revelação das contradições ideológicas (cf PLANCHON e sua Mise en Piêcei s) du Cid, seu Arthur Adamov ou suas Folies bourgeoises) ou as encenações do Théâtre de l'Unité (!).
• Retorno ao mito
A encenação se desinteressa da dramaturgia específica do texto, para pôr a nu o núcleo mítico que o habita (ARTAUD, GROTOWSKI, BROOK e CARRIERE em sua adaptação do Mahabarata).
b. Alterações na escritura
Um meio possível de se demarcar os tipos de encenação consiste em observar como elas tratam o texto: "Por qualquer extremidade que sejam pegas, todas as perguntas que o teatro faz sempre conduzem a esta: que acontece com o sentido do texto no palco?" (SALLENAVE, 1988: 93). Cada década parece haver inventado sua própria relação com os textos e o palco:
- os anos cinqüenta propuseram uma leitura (respeitosa) das peças do patrimônio nacional (VILAR);
- os anos sessenta introduzem uma releitura crítica e distanciada (PLANCHON);
- os anos setenta preferem uma desleitura, desconstrução polifônica e dialógica (BAKHTIN, 1978) das práticas significantes (VITEZ);
- os anos oitenta questionam a estética da recepção e o "papel do leitor" (ECO, 1980), tomam altura e propõem meta leituras que timbram toda observação com o selo do comentário, marginal ou predominante (MESGUICH);
- os anos noventa restauram os poderes da escritura e assistem a uma eclosão de escrituras tanto autônomas quanto abertas numa encenação: superleitura que se presta a todas as situações (COLAS ou PY);
- e no terceiro milênio? O texto, ou o hipertexto, talvez passe da memória humana à memory da máquina, do corpo à virtualidade, sem que ninguém tenha mais consciência dele, misturadas que estarão hiperescritura e hiperleitura.
(PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: perspectiva, 1999, p. 122 - 127)
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